Presidente eleito Lula (PT) Foto: CARL DE SOUZA / STF
O
governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) planeja para as
primeiras semanas após a posse um “revogaço” de portarias e decretos
implantados ao longo da gestão de Jair Bolsonaro. O foco será reverter
iniciativas que facilitaram o acesso a armas, dificultaram o combate ao
desmatamento e impuseram sigilos a informações.
O
cancelamento dessas medidas depende apenas da decisão do Executivo, sem
necessidade de construção de uma maioria parlamentar. A lista exata de normas
que serão derrubadas ou modificadas começará a ser decidida nesta semana, com o
início dos trabalhos da equipe de transição coordenada pelo vice-presidente
eleito, Geraldo Alckmin. Cinquenta pessoas vão preparar uma radiografia do
atual governo.
Uma
das bandeiras da campanha de Lula, a redução do número de armas em circulação
deve ser alcançada, entre outras formas, por meio da mudança completa das
políticas de Bolsonaro.
— O
compromisso expresso na campanha foi revogar decretos que facilitam o acesso a
armas e munições — afirma o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que integrou o
grupo responsável por discutir propostas para a segurança pública.
Em
entrevista ao GLOBO na semana passada, o senador eleito Flávio Dino (PSB-MA),
cotado para o Ministério da Justiça, classificou de “imprescindível” a revisão
de regras no setor. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública diz que o
controle da posse de armas foi “desmantelado”, fazendo com que civis e
Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) tenham em mãos um arsenal
superior ao de órgãos públicos. Ao todo, foram editados 19 decretos, 17
portarias, duas resoluções e três instruções normativas.
Foi
por meio de “canetadas”, por exemplo, que Bolsonaro abriu caminho aos CACs. A
quantidade a que a categoria podia ter acesso passou de 16 armas, 40 mil
projéteis e quatro quilos de pólvora para 60 armas, 180 mil cartuchos e 20
quilos de pólvora. Com as mudanças nas regras, o número de CACs cresceu de 117
mil em 2018 para mais de 673 mil até junho de 2022 — as armas registradas pelo
grupo saltaram de 350 mil para mais de 1 milhão no período.
—
Precisamos repensar o controle de munição. É preciso não apenas revogar, mas
inovar para facilitar o rastreio de cartuchos e tornar obrigatória a marcação
da munição vendida no país — afirma o policial federal Roberto Uchôa,
pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Já o
gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, defende que até mesmo as
mudanças barradas pelo Supremo Tribunal federal (STF) precisam ser anuladas:
— A
autorização para compras de armas sem a justificativa de necessidade, por
exemplo, caiu com uma decisão do ministro Edson Fachin, mas precisa ser
revogada para não causar confusão jurídica. Além disso, a decisão proíbe
compras de fuzis por civis, mas não trata das armas já compradas, que estão em
circulação. O novo governo vai precisar se debruçar sobre isso.
Na
área ambiental, o deputado federal Nilto Tatto (PT), um dos coordenadores do
setor na campanha de Lula, elenca como prioridade a revogação de dois atos do
governo Bolsonaro — um que reduziu o espaço da sociedade civil no Conselho
Nacional de Meio Ambiente (Conama); e outro que prevê a anulação de multas
ambientais avaliadas em mais de R$ 16 bilhões.
—
Temos que trabalhar nisso agora no início do governo, pois esses atos emperram
as outras pautas — disse o parlamentar, que irá junto com Lula à Conferência
das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), no Egito.
Na
conta do centro de pesquisa independente Instituto Talanoa e do projeto
Política por Inteiro, existem 401 atos do Executivo emitidos entre 2019 e 2022
que precisam ser revistos “para a reconstituição da agenda climática e
ambiental brasileira”. Estão também na lista normas que versam sobre direitos
indígenas e facilitação ao garimpo, dificultando a fiscalização.
Na
opinião da pesquisadora Natalie Unterstell, presidente do Talanoa, apesar da
urgência em tratar muitas questões, é preciso evitar a tomada de decisões
importantes sem debate. A lista de assuntos frágeis inclui a NDC (Contribuição
Nacionalmente Determinada), que é a proposta oficial do Brasil de redução de
emissões de CO2.
—
Até se pode ir lá e jogar um ato logo no primeiro dia colocando uma NDC nova,
mas a gente entende que é indispensável para isso refazer o diálogo com a
sociedade — diz a cientista
A
maior parte das normas infralegais que precisam de revisão foram emitidas
durante o primeiro ano e meio de pandemia da Covid-19, quando o ex-ministro do
Meio Ambiente Ricardo Salles propunha que o governo aproveitasse a situação de
instabilidade para seguir “passando a boiada” dos atos que flexibilizavam
normas ambientais.
O
Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) produziu um levantamento dessas
medidas no ano passado. Para Alessandra Cardoso, analista política da entidade,
é preciso atuar fora do Ministério do Meio Ambiente também:
—
Muitas “boiadas” passaram no Incra, na Funai, no Ministério da Economia... A
gente tem que ter um olhar amplo para o que foi esse desmonte e revertê-lo nos
primeiros cem dias de governo.
“Sem
revanchismo”
Também
está nas pretensões de Lula revogar decretos que impuseram sigilos de cem anos
a assuntos envolvendo o governo federal. O petista chegou a prometer rever
essas iniciativas nos debates com Bolsonaro ao longo da campanha. Ficaram sob
sigilo, entre outros temas, a carteira de vacinação do presidente, o processo
interno do Exército sobre a participação do então general Eduardo Pazuello em
manifestação ao lado de Bolsonaro no Rio em maio de 2021, os crachás de acesso
dos filhos de Bolsonaro ao Palácio do Planalto e a investigação da Receita
Federal contra o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Há
pontos críticos ainda nas áreas de saúde e educação, que não devem passar
incólumes ao “revogaço”. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass)
elabora um documento para entregar à equipe de transição com políticas que, na
opinião da organização, devem ser revistas, como programas e portarias lançados
pelo Ministério da Saúde sem discussão com gestores locais, contrariando o que
prevê a legislação. Um dos pontos é a Rede de Atenção Materno Infantil (RAMI),
que substituiu a Rede Cegonha, criada em 2011 e reconhecida pelo sucesso em
relação à atenção ao pré-natal, parto e puerpério. Entre as críticas, estava o
fato de a política dar protagonismo a médicos obstetras sem prever atenção à
criança por meio de pediatras.
—
Tivemos desmontagens no campo da atenção básica, além da interrupção de
programas na área de saúde da mulher. O ministério destruiu a relação de gestão
tripartite com municípios e estados. Não é revogar por revanchismo, vamos ter
que avaliar os atos. É para isso que serve a transição: identificar os
principais problemas — afirma o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, que
participou da construção do plano de governo de Lula.
Na
educação, um dos principais alvos deve ser a Política Nacional de Alfabetização
(PNA). Organizações como Todos pela Educação e a Campanha Nacional pelo Direito
à Educação, que devem ter representantes na equipe de transição, defendem a
revogação. A PNA colocou como central a aplicação do método fônico para
alfabetizar crianças, modelo em que a aprendizagem começa das letras e sílabas
até chegar às palavras. Na época em que foi lançada, a política foi criticada
por gestores locais e estaduais por ter desconsiderado as iniciativas que
vinham sendo desenvolvidas por estados e municípios a respeito do tema.
Fonte: https://extra.globo.com/noticias/politica/governo-lula-vai-comecar-com-revogaco-em-normas-sobre-meio-ambiente-armamento-25604446.html