sábado, 17 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo: Tragédia anunciada

VITIMOLOGIA 
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Carlos Alberto Marchi de Queiroz

O mundo está chocado com a ação terrorista realizada por três franco-argelinos contra a revista Charlie Hebdo.
O golpe de mão que ceifou a vida de doze pessoas e produziu lesões corporais em outras dez, tingiu de sangue as redações midiáticas de todos os países.
O que teria levado jovens fanáticos, um deles em liberdade condicional por terrorismo, a empreender o tresloucado ato que matou dois agentes da Polícia Nacional, um deles muçulmano?
É preciso lembrar que, na segunda metade do século 20, criminólogos passaram a estudar o comportamento das vítimas em crimes de sangue, sob os pontos de vista psicológico, social, econômico e jurídico.
Benjamin Mendelsohn, advogado em Jerusalém, foi o primeiro a examinar o comportamento da vítima na criminogênese.
Em 1974, o professor espanhol, de origem judaica, Israel Drapkin, publicou o livro “Vitimologia”. O título da obra acabou por dar nome a esse ramo da Criminologia.
A partir daí, os códigos penais ocidentais passaram a permitir que juízes , em suas sentenças, pudessem considerar o comportamento da vítima na etiologia do delito, antes da aplicação da pena.
O Código Penal de 1940, reformado em 1984, incorporou os ensinamentos de Mendelsohn e de Drapkin, permitindo, no artigo 59, ao magistrado levar em consideração o comportamento da vítima no resultado final.
A imprensa, logo após o 7 de janeiro, acontecido no 11º distrito de Paris, passou a noticiar que os cartunistas mortos eram veteranos militantes do humor gráfico, fazendo lembrar, nas devidas proporções, a equipe de “O Pasquim”, que acossou, com sucesso, os governos militares.
O “Charlie Hebdo”, de linha mais ácida que seu concorrente “Le Canard Enchainé”, oferece charges produzindo a possibilidade do leitor exercitar, em sua plenitude, o brocardo romano “ridendo castigat mores”que, pelo riso, recomenda a correção dos costumes.
Todavia, para compreender o ocorrido, é preciso entender a realidade sócio-política francesa, onde a liberdade, a igualdade e a fraternidade encontram-se distanciadas do lema da Revolução Francesa.
Todos que visitam a França, de olhos abertos para sua realidade social, verificam que ela vive as terríveis consequências da política colonial, na África, no Sudeste Asiático e nas Antilhas.
Suas cidades, inclusive Paris, atormentadas pelo trânsito infernal, e pelo lixo, acolhem, com usos e costumes, mesquitas, templos e santuários, legiões de antigos colonos que podem viver na Metrópole, como franceses,como mão de obra não especializada.
Apesar de ser acolhedora, a França comporta-se, reservada e cerimoniosamente, em relação àquelas nacionalidades. Os leitores lembram-se da crise, ocorrida durante o governo Sarkozy, filho de húngaros, em razão de cercear o uso de véus, o chador, pelas mulheres islâmicas. Também, dos misteriosos incêndios de automóveis na periferia parisiense.
Estrangeiros que visitam a França, livres das amarras linguísticas e do controle dos guias, notam o distanciamento dos franceses, disfarçado por um suposto orgulho nacional. Até mesmo descendentes de colonos, retornados principalmente da Argélia, após a guerra da independência, são chamados, depreciativamente, de pieds noirs, pés pretos. Napoleão Bonaparte, nascido na Córsega, era tratado pelos colegas da Academia Militar de Brienne como “La Paille au Nez”, aquele que tem palha no nariz.
O “Charlie Hebdo”, ao exercer seu direito constitucional de expressão, cujo editor encontrava-se sob proteção policial, desde o atentado a bomba sofrido quatro anos antes, não poupa, em suas charges, de forma contundente, expoentes cristãos, judeus e muçulmanos.
Edições da revista estamparam em suas capas a Virgem Maria, em trabalho de parto, dando a luz ao Menino Jesus, o papa Francisco, no Rio, vestido de cabrocha, o profeta Maomé, em situações inusitadas, assim como figuras históricas judaicas em comportamentos incomuns, desconsiderando valores cristãos, judeus e muçulmanos, de pesos diferentes, cuja, tolerância religiosa é tão flagrante quanto o azeite na água.
Talvez aí esteja a explicação vitimológica da tragédia. A intolerância religiosa não pode nunca se sobrepor à liberdade de expressão. Mas, é preciso lembrar, sempre, antiga lição da Medicina: o que distingue o remédio do veneno é a dose.


Carlos Alberto Marchi de Queiroz é professor da Academia de Polícia do Estado de São Paulo

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