terça-feira, 17 de janeiro de 2017

ACHADO NÃO É ROUBADO?

DIREITO PENAL

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Carlos Alberto Marchi de Queiroz*

Notícia publicada pelo Correio Popular, de 8/1, A10, desperta em mim vontade escrever sobre um fato de raro registro nos pretórios policiais, judiciais e pelo Direito Penal.
O jornal estampa, discretamente, que um ex-secretário municipal, de importante cidade, conhecida no passado como Manchester paulista, foi preso em flagrante no Aeroporto de Viracopos indiciado por furto simples ao achar um envelope contendo US$ 1.000 e um green card, importante documento nos Estados Unidos.
Após encontrar as coisas, o inventor, ou achador, entregou apenas o documento no check-in da companhia aérea, retendo o numerário. O dono, por sua vez, procurou a delegacia para registrar a perda em boletim de ocorrência não criminal, objetivando resguardar direitos.
 Investigadores, examinando imagens do circuito interno de televisão, recuperaram cenas de um suspeito que, revistado, foi surpreendido com as verdinhas, aninhadas na carteira, prestes a embarcar com familiares rumo ao mundo maravilhoso de Disney, em Orlando.
Levado aos costumes, o indigitado viajor foi autuado em flagrante por crime de furto simples, com direito a fiança criminal. O ex-secretário de Gestão de Pessoas e de Comunicação, após prestar caução, foi posto em liberdade.
Agora vamos enfrentar a pergunta que não quer calar: houve furto? A resposta demanda uma viagem ao passado do Direito Penal, em cujos primórdios crime era tudo aquilo que desse na telha daqueles que estivessem no topo da pirâmide social: o príncipe (principal servidor), o imperador, o rei, o czar, o duque, o caudilho, o cacique.
À medida que a aventura do homem sobre a face da Terra adquiriu contornos mais nítidos, legislações começaram a aparecer, como a Lei das Doze Tábuas e o Código de Hamurabi, hoje exposto no Louvre, em Paris, talvez inspiração do Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau.
 Aos poucos, os crimes foram sendo registrados pelas codificações dos países, sem qualquer  técnica jurídica.  Portugal, de onde remontam nossas tradições legislativas, editou os Forais e,  sucessivamente, as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, revogada expressamente no Brasil pelo Código Civil de 1916.
Até 1813, no Ocidente, crime era tudo aquilo que estava no sentimento dos governantes, até que Anselmo Von Feuerbach, autor do Código Penal da Baviera, nele implantou a Teoria do Tipo (Tatbestand), estabelecendo que crime é somente o que está previsto, tipificado, em lei. Tudo que ficar fora do tipo é atípico!!! Vale o que está escrito!!!
A Teoria do Tipo, ou da Tipicidade, estabelece que crimes são modelos, pinturas, moldes,recortes, fôrmas, tipos  pré-estabelecidos pelo legislador.  Sua infringência por pessoas  penalmente responsáveis permite o Estado-juiz a julgá-las.
No episódio noticiado por este prestigioso veículo midiático inocorreu  consumação de um tipo penal, mas, tampouco, houve crime de furto simples, afiançável,  mesmo considerando-se a conduta imoral do viageiro. Equivocou-se a autoridade policial presidente do flagrante, que optou por registrar o condenável comportamento em auto, impróprio, que, mesmo assim, chegará ao conhecimento do Poder Judiciário. Afinal, quem sentencia é o juiz e não o delegado.
O Código Penal, na cabeça do artigo 155, preceitua que subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel constitui crime de furto, apenado com reclusão, de 1 a 4 anos, e multa. O encontro de um envelope, com documento e dinheiro, não é conduta que se ajusta ao tipo 155! O autor não se aproximou da vítima, nem de sua casa, para afaná-la.
Crime houve, porém na conduta prevista no artigo 169, II, do Código Penal, identificado por ementa lateral como apropriação de coisa achada, apenado com detenção de 1 a 3 meses, e multa. Este delito, sim, amolda-se, ajusta-se como uma luva à linguagem corporal, imoral, do indigitado turista nacional que agasalhou os mil dólares..
A prisão foi excessiva. Nesses casos, o achador tem  prazo legal de 15 dias para encontrar o dono da coisa achada... Só depois é que o crime se consuma ... Está na lei...
O povo costuma dizer, equivocadamente, que achado não é roubado, mas achar é crime. Todo aquele que fica com coisa perdida, decorridos 15 dias, pode ser detido e qualificado em termo circunstanciado face à natureza permanente do crime. Mas fiquem tranquilos os amáveis leitores.  Haverá processo neste curioso caso.  O envolvido poderá ser condenado ou absolvido. A Justiça é cega. Ele não deverá alegar que sua conduta constitui fato atípico. Cometeu infração penal de pequeno potencial ofensivo. Foi pego com a boca na botija. Por ela responderá no Juizado Especial Criminal. Gastará com advogado...
Vale lembrar, neste drama, as palavras do jurista italiano Francesco Carnelutti. Ele escreveu que “em nove de cada dez vezes, a pena jamais termina. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, o homem não!”

*Carlos Alberto Marchi de Queiroz é professor de Direito e membro da Academia Campinense de Letras.

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