Por Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno, Fórum Brasileiro
de Segurança Pública
09/11/2017 04h55(Foto: Alexandre Mauro/G1) |
Sherlock Holmes, o detetive mais
famoso do mundo, surgiu nos romances policiais ingleses na década de 1880.
Criado pelo escritor Artur Conan Doyle, Sherlock é o protagonista de ao menos
40 romances policiais e povoa até hoje o imaginário popular quando o assunto é
a investigação de crimes.
É deste mesmo período a criação
da figura do inquérito policial no Brasil, peça jurídico-processual criada em
1871 e a quem é tributada a lógica da investigação criminal no Brasil,
altamente burocratizada, formalista e pouquíssimo maleável às inovações técnicas,
tecnológicas e de gestão.
Apesar da proximidade temporal, o
“mito” de Sherlock Homes está longe de constituir a tônica do cenário
investigativo no Brasil. No enredo do detetive infalível os investigadores
analisam a cena do crime, interrogam pessoas, o suspeito é identificado e,
quando confrontado com provas irrefutáveis de sua culpa, confessa e termina
seus dias preso.
Com 61,6 mil homicídios por ano,
conforme apontado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública na semana
passada, o Brasil concentra o maior número absoluto de homicídios de todo o
planeta, mas está longe de ter recursos humanos, tecnológicos e a
infraestrutura necessária para lidar com estes crimes que, na maioria das
vezes, acabam na impunidade.
Dito de outra forma, o modelo de
investigação e esclarecimento de crimes no Brasil é, para dizer o mínimo,
completamente descolado da realidade atual do país e não tem conseguido dar
conta do cenário crescente de crime e violência. Congestionamos a Justiça com
papéis e carimbos, mas quase não esclarecemos crimes.
E isto não é implicância de
“especialistas de gabinetes”, para usar uma analogia feita por setores da
sociedade que não querem mudar ou, se querem, acham que a solução é fazer mais
do mesmo independentemente das evidências dos nossos fracassos civilizatórios
na segurança pública. É um fato que agora ganha contornos bem mais nítidos pela
cobertura que o Monitor da Violência faz do que aconteceu a partir das 1.195
mortes ocorridas no Brasil entre os dias 21 e 27 de agosto deste ano.
Do total de inquéritos policiais
instaurados, a reportagem teve acesso a 1.014. Pela análise dos casos, o G1
constatou que em 15% (141) houve a prisão de suspeitos, seja por flagrante ou
como resultante das investigações. Estes números revelam dois fenômenos, sendo
o primeiro o fato positivo de o sistema de justiça criminal e de segurança
pública brasileiro conseguir registrar e conhecer os crimes, mostrando que o
Estado está presente e pode atuar. Ou seja, se conseguimos saber oficialmente
que tais mortes ocorreram, temos condições e a obrigação de tentar levar seus
responsáveis à Justiça.
Porém, o segundo fato revelado
pelos dados trazidos pelo Monitor da Violência é que não é exagero retórico
afirmar que este mesmo sistema de justiça criminal e de segurança pública vive
de processar flagrantes, tendo grande dificuldade em solucionar crimes que
exigem investigação e, mais, de fazer uma pesada máquina pública funcionar para
que os crimes solucionados sejam devidamente processados e julgados.
Sem estabelecer uma ordem de
causa e efeito, vários são os fatores associados que explicariam os dados.
Entre eles, as instituições do sistema de justiça e segurança operam a partir
de um centro de política criminal e penitenciária que prioriza o criminoso e
não o crime, provocando distorções em relação a quem está sendo objeto de
tratamento penal.
O 11º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, recentemente divulgado, mostrou por exemplo que em várias
unidades da federação há mais registro de uso de drogas do que, até mesmo,
tráfico, congestionando ainda mais as unidades das polícias civis e diminuindo
o espaço para o esclarecimento de homicídios.
Ao mesmo tempo, em segundo lugar,
temos um modelo engessado que confunde investigação com o trabalho de
persecução penal das polícias civis, desobrigando a adoção de novas tecnologias
e estratégias de trabalho e/ou fomentando que as demais instituições sintam-se
corresponsáveis para a preservação de locais de crime, entre várias outras
atividades que poderiam ser aperfeiçoadas.
As polícias civis, por sua vez,
encontram-se sucateadas no país todo e, com raras exceções, são corporações
pequenas e pouco valorizadas pelas autoridades políticas. Faltam-lhes recursos
humanos, materiais e logísticos para conduzir investigações com mais efetividade.
Todavia, muitas destas corporações ficam olhando para o retrovisor quando
poderiam liderar transformações fundamentais.
Isso porque, ao contrário das
polícias militares, que ao longo dos anos construíram um pensamento estratégico
que as coloca em posição de força para negociar com os governos, as polícias
civis do Brasil atuam muitas vezes de forma descoordenada e sem um projeto
claro de instituição.
Já Ministérios Públicos e Poder
Judiciário, que respondem por boa parte do tempo médio de tramitação dos
processos criminais, parecem muitas vezes não se sentirem corresponsáveis pela
segurança pública, pela enorme quantidade de presos provisórios ou pela
ampliação do sentimento de insegurança e impunidade que vige no país.
Hoje temos um enorme jogo de empurra,
pelo qual cada corporação ou ator político defende sua posição institucional,
mas ninguém assume o controle do crime e a prevenção da violência como missão.
Todos têm razão, trabalham muito, mas a segurança pública fica sem dono; sem de
quem a população possa cobrar resultados.
A investigação criminal no Brasil
vive em um ambiente vintage típico do Império, quando a figura do inquérito
policial foi criada. Só que, como os novos dados do Monitor da Violência nos
alertam, temos que parar de valorizar o grande cartório da impunidade que se
transformou a atual política criminal do país. Não podemos ter dúvidas em
dizer, em alto e bom som, que o Brasil precisa priorizar a vida e reduzir a
violência.
*Renato Sérgio de Lima e Samira
Bueno são diretores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
MONITOR DA VIOLÊNCIA
Url da matéria: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/cartorio-da-impunidade.ghtml
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