História da vida real
imagem: internet
Carlos Alberto Marchi
de Queiroz*
Esta é uma história real, contada
por uma grande colega de trabalho, poucos anos antes de falecer.
No mês de dezembro de 1924,
Josefina, menina de dez anos, já em férias escolares, passava as tardes brincando
de professorinha no terraço de sua casa ajardinada. Ensinava coleguinhas, de
ambos os sexos, a melhorar a redação. Ditava-lhes textos.
Seus pais, paulistanos,
trabalhavam na Alfândega do porto de Santos. Deixavam a filha, sozinha, com
alimentação, no lar, e que aproveitava o tempo para brincar de professora no
pretório, no jardim da casa, e na calçada fronteiriça.
Certo dia, uma moça bonita,
passando ali, notou a habilidade da garotinha em escrever textos. Sem titubear,
perguntou-lhe se ela estaria disposta a escrever-lhe cartas, pois só sabia
assinar o nome. Dar-lhe-ia alguns
tostões.
A garotinha aceitou, passando a
escrever as palavras ditadas pela bonita mulher, sem instrução, que sempre a
procurava. Na sua inocência, Josefina nunca percebeu que a moça era
prostituta na zona do cais. As missivas levavam sempre, ao final, um
coraçãozinho trespassado por uma flecha, desenhado a pedido.
A competência redacional da
menininha espalhou-se rapidamente entre as falenas, hetairas, meretrizes,
horizontais, mundanas, tortas e quengas, que fingiam vender amor aos marinheiros.
Ela atendia as encomendas sem esforço.
Os tostões eram utilizados para comprar balas e doces distribuídos aos coleguinhas, nos intervalos das
aulinhas.
De repente, seus pais , altos funcionários, foram transferidos
para São Paulo, por necessidade do serviço, terra natal da menina, que deixou
seus coleguinhas da escolinha, tristes,
bem como suas clientes, a ver navios...
Em São Paulo, Josefina, face ao
status dos pais, foi matriculada em colégio particular, de renome, da classe
Sion ou Les Oiseaux, não sei dizer, onde demonstrou seu talento como discente,
em todas as disciplinas.
No último ano do curso, à época
uma mistura de ginásio e de colégio, a professora de Português decidiu
implantar dois cursos, um de redação oficial, e um de elaboração de cartas, passando a exigir das normalistas a
produção do respectivo material.
Ao corrigir a carta escrita por
Josefina, a professora levou um susto ao inteirar-se do texto da normalista,
que absorvera, sem querer, um picante estilo romântico, nunca chulo, das
mariposas do cais, sempre encerrados com
o desenho de um coraçãozinho varado pela flecha do Cupido...
A diretora do colégio,
horrorizada com aquela redação, convocou os pais da jovem para comparecerem à
diretoria, onde, entregando-lhes o histórico escolar da aluna, recomendou-lhes
que a matriculassem na rede estadual. Josefina encontrou vaga no Colégio
Caetano de Campos, na Praça da República, hoje sede da Secretaria Estadual da
Educação. A sós, a diretora disse à
ex-aluna, antes da chegada de seus pais na instituição: ” A senhorita nunca vai
ser nada na vida!” A mocinha concluiu o
curso colegial, na rede estadual, no final de 1930.
No dia 26 de janeiro de 1932,
Josefina Scaramuza tornou-se a primeira guarda civil de primeira classe, da
Guarda Civil de São Paulo, numa época em que nem se pensava em Polícia
Feminina, criada por Jânio Quadros, vinte anos depois. No dia 10 de julho de
1933, Josefina foi promovida ao posto de 3º sargento da GC paulista.
Com a entrada do Brasil na
Segunda Guerra Mundial, em 1942, a jovem concluiu, com êxito, os cursos de
instrução militar e de enfermagem da Força Expedicionária Brasileira, que se
preparava para combater o nazismo na Europa. Após o final do conflito, em 8 de
maio de 1945, a belíssima enfermeira Scaramuza, que entregara o pavilhão
nacional aos febianos defronte a atual Prefeitura de São Paulo, foi
desmobilizada.
No dia 24 de agosto de 1955, foi
nomeada pelo governador Jânio Quadros para o cargo de diretora da Divisão de
Pessoal da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Após implantar moderníssimo
sistema de gestão de pessoas na corporação, recebeu a visita de uma
representante da Secretaria Estadual da Educação, que desejava adotar semelhante sistema em sua instituição.
Ao final da visita, a funcionária
da Secretaria de Educação dirigiu-se a Josefina dizendo-lhe: “ Parece que eu a
conheço de algum lugar.” Então, ela respondeu, de chofre: “ Foi a senhora que me
expulsou do colégio por causa da carta,
profetizando que eu não seria nada na vida!!!”
Josefina bacharelou-se em Direito
pela FMU, colando grau em 27 de dezembro de 1974, aos sessenta anos de idade.
Aposentou-se como agente do serviço civil, nível VI, em 11 de dezembro de 1984.
Faleceu aos 93 anos de idade, solteira.
*Carlos Alberto Marchi de Queiroz é professor de
Direito e membro da Academia Campinense de Letras