OPINIÃO
Por Leonardo Marcondes Machado*
O Supremo Tribunal
Federal, em julgamento pelo Plenário virtual ocorrido na última sexta-feira
(26/6), a respeito da constitucionalidade do artigo 48, parágrafo 3º, da lei de
drogas (Lei 11.343/2006), acabou se manifestando sobre questões bastante polêmicas
em torno da natureza e legitimidade para a lavratura de termos circunstanciados
em geral.
Muito embora o objeto
central da ADI 3.807 fosse um dispositivo legal específico relacionado à fase
pré-processual da lei de drogas, colhem-se do voto da ministra relatora Cármen
Lúcia certas afirmações gerais a respeito do modelo investigativo preliminar
brasileiro que exigem maior reflexão.
A sua tese primeira é a
de que “a lavratura de termo circunstanciado de ocorrência não configura ato de
investigação”. Defende, com base em parcela da doutrina, que seria um mero
boletim de ocorrência “mais detalhado”[1] ou “mais elaborado”[2].
Em complemento, firma a
segunda tese no sentido de que a lavratura de termo circunstanciado “não é
função privativa de polícia judiciária”. Sustenta, aliás, que, não sendo
procedimento investigativo, “mas peça informativa com descrição detalhada do
fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato, deve-se
reconhecer que a possibilidade de sua lavratura pelo órgão judiciário (no caso
do artigo 48, parágrafos 2º e 3º, da Lei 11.343/2006)[3] não ofende os
parágrafos 1º e 4º do artigo 144 da Constituição, nem interfere na
imparcialidade do julgador”.
O Ministro Marco
Aurélio, por sua vez, divergiu do voto da relatora, firmando posição contrária
à decisão da maioria, nos seguintes moldes: i) o termo circunstanciado
representa, a par do inquérito, um procedimento investigatório, voltado às
infrações penais de menor potencial ofensivo, e não mero registro de
ocorrência; ii) esse tipo de atividade investigatória se insere no rol de
atribuições privativas da Polícia Civil (estadual ou federal).
Em seu voto dissidente,
o Min. acentua ser “unívoca a feição de procedimento investigatório,
manifestação do poder de polícia judiciária, cumprindo o papel de inquérito e
servindo à deflagração de denúncia” com base no artigo 77, parágrafo 1º, da Lei
9.099/1995. Insiste que, “se dúvidas ainda pudessem existir, surgiriam
afastadas ante a edição da Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013, cujo artigo
2º, parágrafo 1º, versa a investigação criminal conduzida pelo delegado de
polícia”.
Relembra, ainda, que “a
matéria não é nova, considerada a jurisprudência do Supremo”. Faz expressa
referência ao julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 3.614, em que
“o Pleno assentou a inviabilidade de policiais militares lavrarem termo
circunstanciado, porquanto ato típico de polícia judiciária, voltado à apuração
de infrações de menor potencial ofensivo, privativo dos delegados de polícia de
carreira, nos termos do parágrafo 4º do artigo 144 da Constituição Federal”.
De fato, tem razão o
ministro Marco Aurélio. O termo circunstanciado de ocorrência constitui, sim,
uma modalidade de procedimento investigativo, muito embora de complexidade
reduzida em face do inquérito policial.[4] Entendê-lo como mero boletim de
ocorrência significaria transferir ao Poder Judiciário toda a atividade
investigativa preliminar em casos de menor potencial ofensivo, o que não
parece, nem de longe, compatível com o modelo constitucional acusatório.
Por conseguinte, em
sendo um procedimento de investigação criminal, deve(ria) ser de atribuição
privativa da Polícia Civil estadual ou federal, também por imperativo
constitucional expresso (artigo 144 da CF). A opção do constituinte de 1988 foi
clara ao distribuir o exercício de funções a órgãos distintos do sistema de
persecução criminal.
A rediscussão desse
modelo constitucional é absolutamente válida e possível, porém exige mudanças
normativas, e não meras interpretações casuísticas. A questão, v.g., da
lavratura de termos circunstanciados por outros órgãos policiais, que
certamente será reavivada com esse “leading case” do Supremo Tribunal Federal,
poderia estar na pauta do Congresso Nacional quanto a um novo desenho institucional
para a segurança pública. A discussão é realmente significativa para o
aprimoramento da justiça criminal, porém deve ser fruto de um intenso debate
legislativo, e não de simples decisionismo judicial.
Em tempo, vale
destacar, nesse contexto de infrações de menor potencial ofensivo, a
necessidade mesmo de uma pauta abolicionista de inúmeras contravenções penais e
tipos criminais incompatíveis com uma visão minimalista da intervenção
jurídico-penal. Esse é, sem dúvida, o ponto inicial para a construção de uma
justiça criminal com menor grau de irracionalidade. Aliás, esse tipo de
filtragem penal, que também poderia ser realizada pelo STF, em sede de controle
de constitucionalidade, é coisa rara por aqui.
[1] GRINOVER, Ada
Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de
26.09.1995. 05 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 118.
[2] BADARÓ, Gustavo
Henrique. Processo Penal. 08 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p.
753.
[3] Lei n. 11.343/2006.
Art. 48. § 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se
imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente
encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a
ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as
requisições dos exames e perícias necessários. § 3º Se ausente a autoridade
judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de
imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a
detenção do agente.
[4] “No Brasil, a
investigação policial pode ocorrer atualmente por meio de dois procedimentos
formais de apuração: inquérito policial (IP/IPL) ou termo circunstanciado (TC),
também chamado em algumas unidades da federação de termo circunstanciado de
ocorrência (TCO). As diferenças fundamentais podem ser assim resumidas: a)
quanto à previsão legal: o termo circunstanciado está previsto na Lei n.
9.099/1995 enquanto o inquérito policial no Código de Processo Penal
(Decreto-Lei n. 3.689/41); b) quanto ao objeto de apuração: o termo
circunstanciado fica reservado às infrações penais de menor potencial ofensivo,
assim consideradas “as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena
máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa” (art. 61 da Lei
n. 9.099/1995) enquanto o inquérito policial às demais espécies de fatos
puníveis criminalmente; c) quanto aos atos de constituição: o termo
circunstanciado representa um procedimento de menor complexidade (não só pelo
número de atos como também pela sua natureza formativa) se comparado ao
inquérito policial; d) quanto ao órgão jurisdicional de controle (e remessa): o
termo circunstanciado fica submetido à competência do juizado especial criminal
(procedimento comum sumaríssimo) ao passo que o inquérito policial à
competência do ‘juiz das garantias’ (conforme a Lei n. 13.964/2019 – eficácia
suspensa pelo STF)” (MACHADO, Leonardo Marcondes. Manual de Inquérito Policial.
01 ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2020, p. 17).
*Leonardo Marcondes
Machado é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito
pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela
Universidade de Girona (Espanha) e especialista em Direito Penal e Criminologia
pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação.
Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2020,
18h17
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