terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A menininha que escrevia cartas de amor

História da vida real

imagem: internet

Carlos Alberto Marchi de Queiroz*
Esta é uma história real, contada por uma grande colega de trabalho, poucos anos antes de falecer.
No mês de dezembro de 1924, Josefina, menina de dez anos, já em  férias escolares, passava as tardes brincando de professorinha no terraço de sua casa ajardinada. Ensinava coleguinhas, de ambos os sexos, a melhorar a redação. Ditava-lhes textos.
Seus pais, paulistanos, trabalhavam na Alfândega do porto de Santos. Deixavam a filha, sozinha, com alimentação, no lar, e que aproveitava o tempo para brincar de professora no pretório, no jardim da casa, e na calçada fronteiriça.
Certo dia, uma moça bonita, passando ali, notou a habilidade da garotinha em escrever textos. Sem titubear, perguntou-lhe se ela estaria disposta a escrever-lhe cartas, pois só sabia assinar o nome. Dar-lhe-ia  alguns tostões.
A garotinha aceitou, passando a escrever as palavras ditadas pela bonita mulher, sem instrução,  que sempre a  procurava. Na sua inocência, Josefina nunca percebeu que a moça era prostituta na zona do cais. As missivas levavam sempre, ao final, um coraçãozinho trespassado por uma flecha, desenhado a pedido.
A competência redacional da menininha espalhou-se rapidamente entre as falenas, hetairas, meretrizes, horizontais, mundanas, tortas e quengas, que fingiam vender amor aos marinheiros. Ela atendia as encomendas  sem esforço. Os tostões eram utilizados para comprar balas e doces  distribuídos aos coleguinhas, nos intervalos das aulinhas.
De repente, seus  pais , altos funcionários, foram transferidos para São Paulo, por necessidade do serviço, terra natal da menina, que deixou seus coleguinhas  da escolinha, tristes, bem como suas clientes,  a ver navios...
Em São Paulo, Josefina, face ao status dos pais, foi matriculada em colégio particular, de renome, da classe Sion ou Les Oiseaux, não sei dizer, onde demonstrou seu talento como discente, em todas as disciplinas.
No último ano do curso, à época uma mistura de ginásio e de colégio, a professora de Português decidiu implantar dois cursos, um de redação oficial, e um de elaboração de  cartas, passando a exigir das normalistas a produção do respectivo material.
Ao corrigir a carta escrita por Josefina, a professora  levou um  susto ao inteirar-se do texto da normalista, que absorvera, sem querer, um picante estilo romântico, nunca chulo, das mariposas do cais,  sempre encerrados com o desenho de um coraçãozinho varado pela flecha do Cupido...
A diretora do colégio, horrorizada com aquela redação, convocou os pais da jovem para comparecerem à diretoria, onde, entregando-lhes o histórico escolar da aluna, recomendou-lhes que a matriculassem na rede estadual. Josefina encontrou vaga no Colégio Caetano de Campos, na Praça da República, hoje sede da Secretaria Estadual da Educação.  A sós, a diretora disse à ex-aluna, antes da chegada de seus pais na instituição: ” A senhorita nunca vai ser nada na vida!” A mocinha  concluiu o curso colegial, na rede estadual, no final de 1930.
No dia 26 de janeiro de 1932, Josefina Scaramuza tornou-se a primeira guarda civil de primeira classe, da Guarda Civil de São Paulo, numa época em que nem se pensava em Polícia Feminina, criada por Jânio Quadros, vinte anos depois. No dia 10 de julho de 1933, Josefina foi promovida ao posto de 3º sargento da GC paulista.
Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942, a jovem concluiu, com êxito, os cursos de instrução militar e de enfermagem da Força Expedicionária Brasileira, que se preparava para combater o nazismo na Europa. Após o final do conflito, em 8 de maio de 1945, a belíssima enfermeira Scaramuza, que entregara o pavilhão nacional aos febianos defronte a atual Prefeitura de São Paulo, foi desmobilizada.
No dia 24 de agosto de 1955, foi nomeada pelo governador Jânio Quadros para o cargo de diretora da Divisão de Pessoal da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Após implantar moderníssimo sistema de gestão de pessoas na corporação, recebeu a visita de uma representante da Secretaria Estadual da Educação, que desejava  adotar semelhante sistema  em sua instituição.
Ao final da visita, a funcionária da Secretaria de Educação dirigiu-se a Josefina dizendo-lhe: “ Parece que eu a conheço de algum lugar.” Então, ela  respondeu, de chofre: “ Foi a senhora que me expulsou do colégio por causa da carta,  profetizando que eu não seria nada na vida!!!”
Josefina bacharelou-se em Direito pela FMU, colando grau em 27 de dezembro de 1974, aos sessenta anos de idade. Aposentou-se como agente do serviço civil, nível VI, em 11 de dezembro de 1984. Faleceu aos 93 anos de idade, solteira.
*Carlos Alberto Marchi de Queiroz é professor de Direito e membro da Academia Campinense de Letras